Como as “fazendas do futuro” vão superar o desafio da produtividade de alimentos?

Setor agropecuário precisa investir cada vez mais em tecnologia para expandir a produção, a fim de suportar o crescente aumento da demanda por comida em um cenário recorrente de instabilidades climáticas.

Como as “fazendas do futuro” vão superar o desafio da produtividade de alimentos?

Dois relatórios recentes definem a dimensão do desafio vivido pela indústria agropecuária neste século. Em 2019, o estudo Perspectivas Mundiais de População, da ONU, apontou um salto de novos habitantes para as próximas três décadas – dos 7,5 bilhões de habitantes atuais para 9,7 bilhões até 2050. Este excedente equivale a duas populações da China, a quem será preciso abrigar, vestir e, sobretudo, alimentar. Para dar conta, a produção de alimentos deve crescer cerca de 56% acima dos níveis de 2010, de acordo com um levantamento do World Resources Institute.

O segundo documento foi publicado no ano passado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). Nele, um alerta claro para a necessidade urgente de contenção do aquecimento global, com meta de 1,5ºC até 2100, a fim de evitar o agravamento de problemas como a escassez da oferta de alimentos, a diminuição das áreas agricultáveis do planeta, o empobrecimento do solo, o comprometimento do acesso a insumos naturais como a água e uma piora da instabilidade do clima, com grandes estiagens e inundações impactando fortemente a produção no campo.

Um reflexo direto do impacto do clima na produção agrícola pode ser verificado no aumento de 94% no valor pago pelo seguro rural aos produtores brasileiros em 2021, na comparação com o ano anterior. Segundo a Federação Nacional dos Seguros Gerais (Fenseg), foram R$ 7,1 bilhões em sinistros para amenizar os danos causados pelo excesso de chuvas no verão e das fortes estiagens registradas no último inverno, em especial nos estados do Sul do País. Este volume de recursos é 246% maior do que o realizado em 2019.

Assim, é neste cenário complexo e explicitado por ambos os estudos que a agricultura mundial vem trilhando uma extensa jornada de transformação, acelerada principalmente pelas tecnologias digitais. Em um mundo onde a população cresce mais rapidamente, os recursos naturais se tornam restritos e as variações do clima submetem plantações e criações a condições extremamente adversas, a utilização de ferramentas tecnológicas aprimoradas para atender ao campo – as agtechs, agriculture technologies, em inglês – é a estratégia mandatória. Mas como as “fazendas do futuro” vão superar este imenso desafio?

Avanços tecnológicos como IoT, edge computing, data analytics, inteligência artificial e machine learning têm sido empregados não apenas para aumentar a produção, mas também para garantir a qualidade em toda a cadeia de valor. O uso da automação nas lavouras e drones de monitoramento não somente melhoram a performance produtiva, mas otimizam o uso de recursos, reduzem o desperdício e garantem transparência e traçabilidade dos produtos em sua trajetória farm to consumer.

Agricultura de precisão

A ocupação desmedida do solo relacionada a atividade agropecuária é uma das questões mais relevantes nesta equação entre produtividade e sustentabilidade. Muitos países têm desenvolvido modelos de produção agrícola em áreas confinadas, onde cada etapa do processo é controlada e assessorada por ciência de dados. É o caso da Holanda, que há décadas investe em fazendas de estufas. Agora, elas estão mais inteligentes, com sistemas eletrônicos que monitoram tudo: temperatura, ventilação, irrigação, proteção ante ameaças biológicas como pragas, plantio e colheita. Resultado: mesmo com uma área agricultável de modestos 10.000 km2 de extensão, o país é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, atrás apenas dos EUA.

Veja mais sobre o case holandês no blog Insights.

Em propriedades tradicionais, com a produção ao ar livre, a transição para o formato suportado por agtechs acontece também de forma acelerada, incluindo drones, robôs, sensores de IoT, edge computing, data centers e blockchain, cada qual com papel definido dentro de um ecossistema integrado.

Os veículos aéreos de comando remoto (drones) evoluíram muito em questões como navegação e reconhecimento por imagem, o que tem contribuído fortemente na realização de tarefas como monitoramento das lavouras e detecção de áreas já prontas para colheita. Este recurso tem sido adotado inclusive por pequenas propriedades, que têm acessado empresas terceirizadoras do serviço (DaaS, drone as a service). Segundo dados do Agribusiness Bulletin, elaborado pela Deloitte, o custo do uso de drone é baixíssimo – US$ 5/acre – e o benefício resultante dos dados e imagens por ele obtido e usado em ações preditivas pode chegar a uma elevação de 20% da produção.

A automação/robotização do processo produtivo no campo tem sido frequente, por exemplo, no trabalho de colheita de frutas e em tarefas relativamente complexas como a semeadura e a aplicação de fertilizantes e defensivos de maneira cirúrgica. É o que faz o pulverizador See&Spray TM, desenvolvido pela Blue River Technology para a multinacional de máquinas agrícolas John Deere. O aparelho utiliza lentes com reconhecimento de imagem aprimorado com machine learning parar identifica ervas daninhas e outras culturas indesejadas para borrifar herbicida exclusivamente neste recorte da lavoura, reduzindo em 77% a aplicação, maximizando o rendimento da safra e diminuindo o risco de dano eventual ao meio ambiente.

 

A indústria de robôs para o campo deve quadriplicar de tamanho.

Ecossistemas de sensores de IoT associados ao processamento de dados na borda (edge computing) estão cada vez mais disseminados no campo. Esta arquitetura inteligente e conectada atua no registro e medição de informações rotineiras como incidência de luz, velocidade do vento, índices de nutrientes no solo e níveis de mistura de insumos.

Para dar segurança e transparência a toda a cadeia produtiva, grandes empresas do setor têm utilizado o blockchain, que permite registrar de maneira completa toda a trajetória relativa ao produto, do plantio até o consumidor final. Isso eleva o grau de confiabilidade das empresas e suas cadeias de supply junto a clientes e investidores.

Adicionalmente, imagens de satélite contribuem no planejamento das safras, indicando onde e quando. É o caso do programa Copernicus, na Europa, que usa destes recursos visuais registrados da órbita terrestre para prestar serviços como o Copernicus Land Monitoring Service (CLMS). São imagens e dados sobre a cobertura vegetal no continente, ocupação do solo, degradação dos ambientes naturais, ciclo das águas e variações térmicas e de energia da superfície terrestre que são disponibilizados semanalmente. Todo este conhecimento integrado a outras tecnologias digitais de monitoramento colabora sensivelmente na elaboração de planos de gerenciamento das lavouras.

Este aparato tecnológico que vem sendo empregado na agricultura 4.0 demanda ainda de infraestruturas de TI híbridas, resilientes e altamente disponíveis para suportar essa demanda por processamento de dados. Uma combinação de cloud e data center on premise que possibilita um data analytics apurado e essencial no planejamento operacional das propriedades, do momento do plantio ao escoamento da produção, monitorando ainda oscilações do valor das safras nos mercados e identificando oportunidades de negócio.

Reflexos diretos

Além do aumento de produtividade, o uso da inteligência de dados e das tecnologias digitais contribui em outras duas importantes frentes. A primeira diz respeito ao desperdício. Estima-se que 1/3 da produção mundial de alimentos é perdida por fatores como precariedade de armazenamento, transporte inadequado e problemas com a cadeia de fornecedores. Os maiores desperdiçadores são países em desenvolvimento nos continentes africano, asiático e latino-americano. Em geral, a perda acontece no momento pós-colheita, quando frutas, legumes, verduras e sobretudo grãos ficam expostos a intempéries do tempo e ao ataque de insetos e pequenos animais, ficando inutilizados e impróprios para o consumo humano.

Para remediar essa perda desnecessária, empresas têm investido em ferramentas digitais como o IoT. Os sensores conectados à rede monitoram silos, armazéns e espaços para secagem de grãos, alertando quanto a umidade excessiva, calor, insetos e outras pragas. Atenuar este desperdício gera múltiplos benefícios. Além da questão propriamente do abastecimento, a sua redução leva a uma diminuição também da ocupação de novas áreas para plantio. Segundo afirma artigo da consultoria McKinsey, apenas evitando esse prejuízo relacionado à produção de grãos, seria possível se preservar uma área do tamanho da França anualmente.

Outra demanda que é atendida com a adoção das agtechs é o alinhamento ESG das companhias do setor agropecuário. Isso porque toda essa aplicação tecnológica no campo é capaz de reduzir o impacto ambiental das lavouras e criações, bem como estimular a implantação de modelos mais modernos de produção de alimentos, como no caso das estufas holandesas. A transparência das informações relativas àquilo que sai das lavouras para a mesa das pessoas também é um ponto altamente positivo. As métricas produzidas pelas tecnologias digitais colaboram ainda para a adoção de programas de neutralização de carbono. A consequência disso tudo para quem produz é um ganho de performance exponencial no negócio, com as suas marcas sendo mais lembradas e desejadas pelos clientes. Segundo a pesquisa Global Sustainability 2021, da consultoria Simon-Kucher & Partners, 60% dos 10 mil entrevistados oriundos de 17 países colocaram a sustentabilidade associada ao produto como fator importante na decisão de compra. Para a Unilever, 33% dos consumidores já procuravam por marcas “eco-friendly” em 2017.

As “fazendas do futuro”, portanto, podem contar com tecnologias digitais em toda a cadeia produtiva – do plantio à colheita, da distribuição à venda, do consumo ao reaproveitamento e reciclagem – sempre com resultados amplamente positivos. Para tanto, os stakeholders envolvidos com o setor de produção de alimentos devem assumir seus papeis: governos, empresas, fazendeiros, instituições civis, investidores, revendedores, prestadores de serviço e, claro, players do segmento de tecnologia. Um novo sistema de produção global e integrado de alimentos, de alta produtividade e baixo desperdício, reduzindo o impacto ambiental, precisa ser criado rapidamente e isso só parece ser possível com a participação de todos.